Uma visão global

Brasília (21/8/19) – Imagine reunir, em um único local, os legítimos representantes de todas as cooperativas do Brasil, das Américas e do mundo. Pois esse grande encontro ocorreu durante o 14º Congresso Brasileiro do Cooperativismo (CBC) que contou com as presenças do presidente da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), Ariel Guarco, porta-voz do nosso movimento em todo o mundo; da presidente da ACI Américas, Graciela Fernandez, representante das cooperativas do nosso continente, e do presidente do Sistema OCB, Márcio Lopes de Freitas, responsável pelas quase sete mil cooperativas brasileiras. O trio participou da abertura do CBC, evento que sempre deixa marcas em nosso movimento.

Basta dizer que a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) nasceu durante um desses congressos, em 1969. De lá para cá, muitas mudanças aconteceram, não apenas dentro do sistema cooperativista brasileiro, mas em todo o mundo. E é justamente sobre essas transformações e sobre as oportunidades abertas para o cooperativismo no Brasil, nas Américas e no mundo que trata esta entrevista, concedida com exclusividade para a Saber

Cooperar. Confira:

 

De que maneira começou a sua história pessoal com o cooperativismo?

 

Márcio Lopes de Freitas – Eu nasci dentro do cooperativismo. O meu avô foi presidente de cooperativa. O meu bisavô foi incentivador do movimento durante a Segunda Guerra. Meu pai foi presidente de cooperativa, meu irmão é presidente de cooperativa... A minha história se confunde com o cooperativismo. Na minha casa se falava muito sobre a filosofia.

O meu pai sempre foi uma pessoa muito focada nos princípios do cooperativismo e trabalhou muito nisso. Então, foi um caminho natural para mim. Quando cresci, ajudei a fundar uma nova cooperativa, em um setor diferente da cooperativa do meu pai e do meu irmão. Eu sempre me senti muito à vontade com a doutrina. Isso faz parte do meu DNA: essa visão da economia compartilhada, da decisão democrática, da equidade.

 

Ariel Guarco – Estou em contato com o cooperativismo desde meus primeiros anos de vida. Ainda muito pequeno, acompanhava minha mãe ao seu trabalho na Cooperativa Eléctrica de Coronel Pringles, a cidade onde nasci e moro, na Província de Buenos Aires, Argentina. Pouco a pouco, me envolvi na vida da cooperativa e, quando jovem, comecei a participar de diferentes atividades.

Eu sempre digo que o cooperativismo é um modo de vida. Depois de muitos anos de participação – nos quais me envolvi cada vez mais –, reafirmo isso. As cooperativas são organizações construídas a partir de e para as comunidades, estão enraizadas em seus territórios e constroem uma economia solidária, inclusiva e democrática, onde ninguém é deixado para trás.

 

Graciela Fernandez – Descobri o cooperativismo há 30 anos. Iniciei minha vida profissional dentro do Centro de Cooperativismo Uruguai, um centro de desenvolvimento e cooperação que promove o cooperativismo em meu país. Todas as experiências importantes do cooperativismo uruguaio começaram ali. Eu fazia parte da equipe e minha função era assessorar e viajar pelo interior, conhecendo as fazendas e dando apoio aos cooperados para que eles pudessem entender melhor o espírito do cooperativismo. Logo me encantei pela visão de negócios do sistema cooperativo, que é muito especial. Primeiro porque é uma visão coletiva. Não está centrada no ganho individual. É democrática e formal, regida por um estatuto, que é a lei. Temos um capital, defendemos um capital, mas as decisões são democráticas, coletivas.

 

 

Quais são os desafios do cooperativismo para a próxima década no Brasil, nas Américas e no mundo?

Márcio Freitas – Eu sou otimista em relação ao futuro do cooperativismo no Brasil. Acho que vamos continuarem um processo de evolução. Precisamos preparar nosso modelo de negócio para surfar a onda das novas tecnologias da informação. As mudanças vão vir e temos de estar preparados. Resiliência e não resistência. O momento que vivemos hoje, com investimentos em capacitação, em modelos de governança, em processos de autogestão e monitoramento, nos põe em posição de surfar essa onda.

 

Ariel Guarco – Para a América Latina, o sistema de trabalho será um grande desafio. As cooperativas também precisam ocupar o terreno da tecnologia. No Uruguai, estamos realizando um projeto chamado “Inovacoop”, com o governo federal, no qual apoiamos incubadoras de suas ações. Eles fazem isso colocando a pessoa e o meio ambiente como prioridades. Tudo isso contribui para construir sociedades mais justas e equilibradas.

 

Graciela Fernandez – As cooperativas têm abastecido com crédito as parcelas da população que mais precisam: pessoas que se viram desempregadas pela redução das vagas de trabalho; mulheres; trabalhadores de baixa renda. Foi nas cooperativas de consumo que nasceram as cooperativas de trabalho, que dão sustento a milhares de famílias da agricultura familiar, inclusive dando base técnica e política para que elas possam até participar de compras públicas. As cooperativas de seguro também têm sido um grande apoio para a população, que anda às voltas com problemas climáticos que afetam a produção de alimentos. Esses são apenas alguns exemplos. Eu acredito que as cooperativas são uma ferramenta muito importante para o desenvolvimento. E acredito que o futuro seria bem melhor se nós cooperássemos uns com os outros, em todos os sentidos. Afinal, somos uma grande família, e o futuro é agora.

 

A maneira como o mundo vê o papel das cooperativas mudou nos últimos 10 anos?

Márcio Freitas – Tem mudado e vai mudar sempre, mas nos últimos 10 anos foi mais intenso, como foram todas as mudanças no tecido da sociedade global. Uma cooperativa é uma aglomeração de gente, e eu insisto nisso porque essa é a grande diferença. Como é uma aglomeração de pessoas, ela muda com as pessoas. Acho que nos últimos anos – principalmente em 2008, com a crise global de confiança – acelerou-se muito o cooperativismo, que tornou-se um porto seguro para a sociedade. As cooperativas tornaram-se um mitigador dos efeitos da crise. A prova mais clara é que nos países onde elas são mais estruturadas, a crise foi menor. O mundo todo reconheceu isso numa assembleia das Nações Unidas, e eu tive o orgulho de estar presente.

 

Ariel Guarco – É exatamente isso. As cooperativas são sempre um bom modelo de negócios, mas em tempos de grandes crises tornam-se mais visíveis como opção. Isso ficou muito claro após a crise global desencadeada em 2008. Foi demonstrado que as cooperativas tinham muito mais capacidade de recuperação para superar as consequências da crise, que poderiam manter empregos e ainda crescer. Hoje, na ACI, valorizamos todo o capital social que as cooperativas têm em todo o mundo e nos tornamos um elo central na Agenda 2030. Somos aliados do sistema das Nações Unidas e compartilhamos com a Organização Internacional do Trabalho a preocupação com o futuro do trabalho. O próprio diretor da OIT reconhece que as cooperativas são verdadeiras incubadoras das novas formas de trabalho que o mundo precisará nos próximos anos.

 

Graciela Fernandez – O mundo globalizado afetou a sociedade e esta é uma etapa da história das mais fortes. O mundo passa por um grande momento de desenvolvimento para o qual as cooperativas têm de se preparar. Muitos alegaram que o cooperativismo desapareceria com o aumento do individualismo, mas, na realidade, o que aconteceu foi um crescimento das ideias mais básicas do cooperativismo. O cooperativismo tornou-se uma alternativa para os excessos da globalização. Tanto assim que as organizações internacionais utilizam o nosso idioma e a nossa palavra-chave: cooperar.


Texto extraído da revista Saber Cooperar

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