Lição de vida
Elizeth Pelegrini é uma mulher em constante construção. Cada aprendizado é um tijolo que sustenta sua personalidade e define a sua essência. Ela ergue um pouco de si mesma a cada dia, como uma propriedade sendo levantada aos poucos: por um novo conhecimento, por meio de uma nova profissão ou pela troca de experiências. “É como se eu tivesse construindo uma casa, e esses tijolos de conhecimento fazem parte da estrutura que vai receber um telhado”, define. “Mas eu não quero por o meu telhado agora”, avisa logo.
Aos 56 anos, ela quer mais. Assume gostar de mudanças. Profissionalmente, nunca temeu desafios. Por uma década, foi funcionária de banco privado. Passou pelo atendimento, abriu contas, trabalhou no mercado de ações e orientou aplicações dos clientes. Formada em Ciências da Computação, fez parte da construção de uma Usina Hidrelétrica em Minas Gerais, onde transformava, por meio do desenvolvimento de softwares, a força das águas em energia para iluminar as casas.
Também se formou em Letras e foi parar na sala de aula. Tornou-se cooperativista e se especializou em Gestão de Sociedades Cooperativas. Entre tantas versões de si mesma, Elizeth Pelegrini é também associada na Cooperativa de Trabalho Magna – Colégio CEM, com sede em Concórdia, Santa Catarina.
Desde março de 2004, ela assumiu o cargo de Presidente do Conselho de Administração da Cooperativa — reconhecida nacionalmente pela excelência em gestão, com destaque para a governança. Desde então, comanda a escola que nasceu, há 25 anos, pautada pelos princípios do cooperativismo e, hoje, conta com 38 associados, todos profissionais da educação. Ao todo, são 480 alunos, com idade entre 5 meses e 18 anos, matriculados na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio.
O colégio CEM oferece um serviço diferenciado. Em 2018 e 2020, recebeu o Prêmio SomosCoop Melhores do Ano. Também foi reconhecido em 2019 e 2021 no Prêmio SomosCoop Excelência em Gestão – premiação vinculada ao diagnóstico Governança e Gestão – Avaliacoop. É considerado um modelo de inovação, principalmente por ser o único do Brasil a ter uma minicidade.
Idealizada na gestão de Elizeth, o projeto levou para dentro da escola a simulação de uma cidade com Prefeitura, Câmara de Vereadores, Casa Cultural, Casa da Ciência, Livroteca, Centro de Convenções, Casa da Ocesc (Representando o Sistema Cooperativista), Cooperativas de Crédito, por exemplo. Tem regras de trânsito e até eleição de prefeito. A proposta é que os estudantes e os professores vivam experiências reais em que possam colocar em prática os princípios do cooperativismo e, assim, aprimorem as habilidades exigidas para viver em sociedade.
Queremos que os nossos alunos desenvolvam valores e princípios que os levem a perceber e a efetivar mudanças de comportamento, de paradigma e a transformação de sua realidade política e social. Queremos incentivá-los a terem respeito com o outro e com a comunidade que está a sua volta e a entenderem, por exemplo, que se tem um mendigo na praça isso também é problema nosso. Nós temos que nos preocupar. Temos que ser melhores”, diz a gestora.
O FRUTO NUNCA CAI LONGE DO PÉ
O cooperativismo sempre esteve presente na vida de Elizeth. O pai dela era cafeicultor e associado a uma cooperativa de café em Araguari, Minas Gerais. Ela o acompanhava no trabalho e nas assembleias dos cooperados. Desde então, se apaixonou pelo conceito. “Ela é uma cooperativista do fundo do coração. Defende não só os princípios do cooperativismo, mas age, realmente, cooperativamente. Ela é a pessoa mais receptiva e inclusiva que eu conheço”, descreve o amigo Elvio Silveira, que, por 35 anos, dedicou-se ao sistema cooperativo.
E Elizeth seguiu os caminhos do pai, mais por vocação do que por planejamento. Quando ela deixou a companhia hidroelétrica em que trabalhava e enviou o currículo para uma vaga de professora de informática, não imaginava que o Colégio CEM era resultado de uma mobilização de 22 professores que queriam encontrar uma solução para que a Escola de Aplicação da Universidade do Contestado, em Concórdia, mantivesse as portas abertas. Surgia então, em 1998, uma instituição sem fins lucrativos, regida por princípios cooperativistas.
Pelo destino, Elizeth se associou ao colégio em 2001, com a missão de ensinar crianças e adolescentes a usarem software e linguagem de programação. Logo, se viu ministrando aulas de inglês, português e matemática para os alunos de 6 e 7 anos.
“Foi um grande desafio porque eu nunca tinha estado em sala de aula, mas fui descobrindo outras habilidades, outras aptidões e me adaptando. Coloquei em prática muitas competências que eu já sabia e aprendi outras mais”, lembra.
CONQUISTA POR MÉRITO
Ensinar e aprender, aliás, é um dos muitos talentos dessa mineira. Quem a conhece, diz que ela tem uma capacidade ímpar de mediar conflitos, de se fazer ouvida e também de ouvir. “Ela tem um dom muito lindo de falar. Eu admiro vê-la falando, ver como ela impacta e cativa as pessoas. Ela sempre busca compartilhar conhecimento. Ela sempre transborda”, relata a filha, Natália, ao se referir a mãe, a dona de uma voz suave e fala pausada sempre entremeada por um sorriso.
Resultado de estudo, técnica e talento nato, logo descobriram que Elizeth tinha “didática e metodologia” para desempenhar as tarefas e, três anos depois, foi convidada para ser presidente da cooperativa, cadeira que ocupa até hoje. Um cargo de destaque ainda é ocupado por poucas mulheres.
Na nossa cooperativa somos a maioria e nunca tivemos um homem presidente. Mas, no contexto do sistema cooperativo, a presença da mulher ainda é pequena. Elas estão nos cargos executivos, nos conselhos, na diretoria, mas não na presidência. É um sistema masculino, mas que passa por um processo de mudança com as gerações que se adequam às transformações culturais e sociais”, analisa a presidente.
Também por isso, Elizeth tornou-se exemplo para outras mulheres também assumirem comandos. É atual vice-presidente da Organização das Cooperativas do Estado de Santa Catarina (OCESC), e, há 16 anos, atua como representante do Ramo junto aos Conselhos Estadual e Nacional. Além disso, faz parte da Associação de Empresárias de Concórdia.
A cooperativista foi também a primeira mulher em Santa Catarina a assumir um cargo no Conselho de Administração da Organização do Estado, mas se recusa a reproduzir a fala de que “é preciso dar mais lugares às mulheres”. A professora prefere reformular a tese e diz que “a mulher conquista espaços porque realmente tem as habilidades necessárias para ocupá-los. Ela só precisa ter acesso a essas oportunidades.”
Como cooperativista que é, Elizeth prefere a união de esforços e de diferentes pontos de vista. Masculino e feminino somados por um resultado de equilíbrio. “Não vejo uma disputa entre homens e mulheres. A mulher, além de ter uma sensibilidade maior, estuda e se prepara mais. Ela é mais sensível e comedida na tomada de decisões. O homem já é mais arrojado e penso que isso equilibra. Os dois ganham. Então, parceria para mim é par”, avalia.
E ser vencedor no coletivo é um dos princípios do cooperativismo. Cooperar e construir em grupo é o que leva o colégio CEM a ocupar o pódio quando avaliado. O segredo está em entender que se trata de um grupo de associados em prol da oferta de um serviço de excelência. Trata-se de uma mudança de mentalidade que deixa de lado o papel de funcionário para assumir que todos são donos.
“Quando o nosso professor entende que ele é um associado e que quanto mais qualidade ele exerce em sala de aula, mais retorno financeiro terá. O resultado é que agrega mais valor ao produto dele como professor, tem mais reconhecimento profissional e retorno econômico. Isso também é gestão.”
CHIMARRÃO COM PÃO-DE-QUEIJO
Nascida no município de Indianópolis, em Minas Gerais, Elizeth viveu até os três anos de idade na roça. Foi criada em Uberlândia, mas sempre voltava para o campo nas férias. Lá, estão as mais saborosas e perfumadas lembranças da infância. O “cheiro do café invadindo a cozinha”, o sabor do biscoito frito ou da comida roubada do fogão da mãe para fazer “cozinhadinha” nas panelas de criança.
Filha caçula de seis irmãos, deixou a cidade natal para escolher uma nova terra, onde fincou raízes. Um trabalho temporário a levou para Concórdia, no Sul, com filhos e o ex-marido. O trabalho acabou, o casamento chegou ao fim, mas ela resolveu ficar naquela região onde tem geadas, entre gente que fala português misturado com dialetos vindos do italiano ou do alemão.
Achava que ali teria mais qualidade de vida para os filhos crescerem e decidiu deixar o resto da família em Uberlândia. “Foi uma ruptura para eles porque fui a primeira a sair do seio familiar”, lembra. E não se arrepende. Foi quando “saiu da caixinha”, nunca mais voltou. “A minha caixinha já queimou... joguei fogo nela”, ri. Mas quando pode, visita essa mesma caixa e vai rever irmãos, tios e sobrinhos. Pai e mãe já não estão por aqui.
Não posso deixar de amar o lugar que eu nasci, onde tenho a minha família”, afirma com o sotaque mineiro já misturado com o cantado tão característico de quem nasceu no Sul.
Versátil, facilmente Elizeth adaptou-se ao novo Estado. Tanto que toma chimarrão, mas não abre mão do pão de queijo. Aliás, faz questão de dizer que a receita que faz da iguaria mineira é apreciada pelo paladar dos amigos catarinenses. Não falta quem se convide para um lanche na casa dela só para comer um pãozinho desses saído do forno.
E a mineira gosta de casa cheia. Tradição familiar de manter gente amada reunida em volta da mesa. Gosta de conversa, da pizza em família no sábado à noite, do almoço de domingo ou das tardes com pipoca. Ela faz questão da presença dos filhos Augusto, 35, e Natália, 30. A caçula diz que a mãe é boa de prosa, companhia ideal para compartilhar pensamentos e ensinamentos. É assim desde sempre.
Se é uma mãe docemente firme, Elizeth não nega que amoleceu com os netos Alice,6, e Bernardo 5. “Meu Deus do céu! Ri. Eu não estrago meus netos. Eu me estraguei!”, dá uma risada, daquelas que terminam em covinhas. “Acho que toda a pedagogia, todo limite, caiu por terra. É um amor que a gente não sabe falar o que é. Não tem palavras. Não me pergunte porque não sei escolher uma palavra para definir isso, mas é muito bom.”
Quando está com eles, Elizeth literalmente se joga no chão, rola na grama. Perde a conta da velocidade do tempo. Eles brincam juntos. As crianças levam seus brinquedos e a avó tem os dela, aqueles que os netos levaram de presente para ela. É farra garantida.
UMA MULHER EM MOVIMENTO
Elizeth tem asas nos pés. Ela acorda e pedala. Fim de semana caminha. Não são passos apressados e distraídos, mas uma jornada atenta e aprazível, assim como ela conduz a vida. Durante o confinamento imposto pela pandemia, ela e alguns amigos decidiram andar ao ar livre, espairecer a mente. A prática deu tão certo que virou o grupo “Liga Cacopé” e hoje soma mais de 50 pessoas que se encontram aos sábados para conhecerem as comunidades próximas a Concórdia a pé.
O destino são pequenos povoados que se reúnem em torno de uma escola, de uma igreja e de um centro comunitário. De alguns, restam apenas ruínas. Elizeth e os amigos caminham entre 20 km a 25 km por fim de semana. No trajeto, conhecem gente, comem frutas direto do pé, fazem fotos das paisagens... “É um momento para desestressar”, define.
Ela nunca para. A filha Natália diz que uma das maiores qualidades da mãe, às vezes, também pode ser um defeito. Ela se entrega demais aos projetos. Falta tempo. Elizeth concorda que é perfeccionista. Mas faz parte dela querer saber mais, estudar sempre e jamais estacionar.
Quando está em repouso físico, ela acelera o cérebro. Estuda piano e ama música clássica. A professora está aprendendo grego, hebraico e história. E para conhecer mais sobre o assunto, ela faz como sempre: pesquisa, destrincha, lê, debate. Até que chegue ao ponto final, porém, ela ainda tem muito a fazer. Não restam dúvidas.
“Até lá, quero fazer o melhor enquanto avó, mãe e profissional no colégio CEM. Ser a melhor que eu puder para o sistema cooperativo sem querer nada em troca. Não é uma barganha financeira. É sentimento. É algo maior. Eu faço porque eu amo. Eu amo isso aqui”, repete três vezes.
Esta matéria foi escrita por Flávia Duarte e está publicada na Edição 41 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação