Uma nova chance
O cooperativismo enxerga em quem já passou por muitas dificuldades na vida uma qualificação para a qual o mercado muitas vezes fecha os olhos, em uma espécie de cegueira que vai na contramão da empatia e da própria movimentação da economia e do trabalho. Enxergamos em cada uma dessas pessoas o desejo de se sentirem úteis e produtivas. Por isso, de norte a sul do país há exemplos de cooperativas que os contratam como colaboradores ou oferecem a eles uma opção de emprego e renda como cooperados.
Um exemplo de como essas pessoas têm a vida transformada pelo cooperativismo pode ser visto no Distrito Federal. Valdemar de Jesus, 38 anos, o Dema, ingressou na cooperativa Sonho de Liberdade em outubro de 2021. Ele conseguiu uma vaga de ajudante de caminhão logo após deixar a Penitenciária da Papuda, após cumprir 18 anos de prisão — sendo o último deles no regime semiaberto, quando recebeu a liberdade condicional. Dema soube da existência da cooperativa quando ainda estava privado de liberdade e contou com um pedido da mãe para fazer parte do grupo.
Se não fosse a cooperativa, eu poderia ter voltado ao mundo do crime. O desespero faz as pessoas cometerem besteira nessa vida. Graças a Deus, e ao trabalho que faço na cooperativa, estou com vida nova, podendo sustentar a família, comprar chinelo, me alimentar. Consegui até tirar minha identidade e CPF, pois eu não tinha nada”, conta.
Hoje, Dema diz ter tudo: uma casa simples, uma esposa, um objetivo na vida. “Esse projeto de reeducandos é maravilhoso, mudou a minha vida. Até o fim do ano, eu quero ter meu próprio carrinho, para trabalhar com reciclagem de lixo”, conta o homem que, na cooperativa, trabalha das 7h às 17h, de segunda a sexta-feira, descarregando material de obra de caminhões de construtoras. O material vai para a reciclagem e volta em formato de madeira para faixas, painéis e outros objetos.
Pelo trabalho, Valdemar recebe café da manhã, almoço, lanche da tarde e R$ 70 por dia, no caso de descarregar dois caminhões. Se descarregar dois caminhões a mais por dia, ganha um acréscimo de R$ 40 — um pagamento que ele pode receber por semana, por quinzena ou por mês, de acordo com sua escolha.
“A cooperativa tem motorista de caminhão e de trator, tem operador de máquina, tem soldador. Eu sou ajudante de caminhão, carrego o caminhão com os restos de material de obra. Estou trabalhando no Setor Noroeste, onde tem muita obra, muito prédio sendo construído. Eu passo o dia limpando as obras. Mas estou aprendendo a fazer de tudo”, conta.
Com suas funções na cooperativa, ele confessa ter mudado de vida e diz que é, sim, um novo homem. “Esse lugar é muito importante para um egresso do sistema prisional. Aprendi a dar valor ao meu suor, ao meu dinheiro, à minha vida. Não uso mais droga, nem bebo”, garante o cooperado, que se tornou uma pessoa responsável, aprendeu a cumprir compromissos e a ter disciplina. “Tem gente que está na cooperativa desde o início. Pretendo ficar muito tempo. Eu me esforço e quero crescer. E quero transmitir essa experiência de vida para outros ex-detentos”, fala, emocionado.
RECICLAGEM DE SONHOS
A cooperativa Sonho de Liberdade surgiu em 2007, quando um grupo de quatro detentos da Penitenciária da Papuda resolveu se unir em busca de um sonho: reconstruir a própria vida sem depender de ninguém. Eles trabalhavam no regime semiaberto, costurando bolas de futebol em um projeto chamado Pintando a Liberdade. O trabalho era muito bem feito, mas poucas pessoas queriam pagar R$ 30 por uma daquelas bolas, preferindo adquirir marcas famosas, por exemplo, por R$ 100. Insatisfeito com a situação, Fernando de Figueiredo, 49 anos, propôs ao grupo que eles mudassem o foco da produção, trabalhando com sobras de material de construção.
Quando eu estava no regime semiaberto, fui morar perto de um lixão. Lá, percebi que muito resto de madeira era jogado fora, desperdiçado. A gente, então, pediu para os motoristas do caminhão deixarem o material na chácara de um amigo. Eu e mais três companheiros começamos a fazer reciclagem. Vimos que dava para aproveitar muita madeira e conseguir dinheiro com ela”, conta Fernando.
A cooperativa, que começou informalmente, com quatro pessoas, chegou a ter 100 integrantes. Hoje, conta com 40 membros. Metade é formada por ex-detentos e metade, por pessoas que estavam em situação de rua. “E não estão mais, graças a Deus”, diz Fernando. De acordo com ele, a média de salário dos cooperados gira entre R$ 2 mil e R$ 4 mil por mês. Os carpinteiros, cooperados que dominam as ferramentas, ganham mais; os carregadores de caminhão recebem salário um pouco menor.
Para ingressar na Sonho de Liberdade, o primeiro passo é comprovar o desejo de mudar de vida.
A gente não dá o peixe, mas dá a vara pro cabra pescar. Nosso objetivo é resgatar a vida do ex-detento não por meio do assistencialismo, mas do trabalho”, conta, enquanto ajuda a equipe a separar os diferentes tipos de madeira que servirão para a fabricação de painéis e de confecção de diversas tábuas para as obras. Madeira que iria para o lixo é transformada, dia a dia, em cavacos, madeira triturada, pallets.
Muita gente encontrou na cooperativa uma chance de mudar de vida. São pessoas que estavam no mundo do crime, roubavam, traficavam e até matavam. Hoje, deixaram de cometer delitos e ocupam a mente com trabalho, com uma perspectiva de futuro. Um ajuda o outro; um cai, o outro apoia. A gente conversa quando eles têm recaída. Aqui não tem discriminação ou exclusão. A gente está lá para estender a mão, fazer com que a pessoa se sinta em casa. Eu me sinto o cara mais rico do mundo sem ter dinheiro na conta”, define.
Esta matéria foi escrita por Freddy Charlson e está publicada na Edição 37 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação